sábado, 11 de maio de 2013

ECOS DE UM COTIDIANO






Ao longo de nossas vidas, passamos por diferentes – e até opostos – momentos interagindo com as mesmas personagens. Temos amigos de longa data, é claro, mas isso acontece principalmente no meio familiar.
 Assim a nossa relação com nossos pais não foge a essa regra: no início, somos inteiramente dependentes deles e a situação, sem que percebamos muito bem, vai se modificando, modificando... até chegarmos à situação inversa. Como tenho dito a meus filhos, o momento dessa troca inevitável e irreversível é muito difícil tanto para uns como para outros... Mas é a vida! Até que chega um dia em que os pais partem... e os filhos passam a ter uma estrela guia em cada um deles. Que bom, pais e filhos         continuam juntos a caminhada!
Meu pai é, para mim, uma estrela que me orienta, me aponta caminhos, me aconselha há mais de 30 anos; minha mãe, pelo seu atual estado de saúde, acredito, que viva entre dois mundos: quase não participa mais deste, mas já “visita” outras dimensões. É o que penso... se estou certa, pouco importa! Não estou mais preocupada com certezas, exatidões, mas apenas em sentir, entender, como posso, o não dito, o nem sempre aceitável.
Felizmente, eu e minhas irmãs, Iainha (Ana Maria) e Ana Lucia, soubemos, muito bem, no dizer da mãe, “separar o joio do trigo” nessa quadra da vida familiar e nos tornamos ainda mais próximas, solidárias e cúmplices no bom sentido. Essa, como qualquer outra situação, por mais difícil que seja, sempre traz consigo seu lado positivo. É só saber procurar com sensibilidade e, se nada for encontrado, pelo menos, que saibamos entender a mensagem que, ali, inevitavelmente existe.
Num encontro de nós três em Porto Alegre, no ano passado, conversávamos e, sem perceber, ora repetíamos uma ou outra expressão que ouvíamos da nossa mãe. Foi, então, que nos detivemos no sem-número de provérbios, ditados e expressões que ela usava no cotidiano. Para “não gastar o seu latim”, expressava por metáforas o que muitas palavras não diriam tão bem nem com tanta poesia, se bem que, às vezes, ela estivesse “sem poesia!”, ou seja, sem ânimo, sem muito entusiasmo. Nesse dia, resolvemos anotar toda essa riqueza que nos foi presenteada ao longo da vida e, à medida que nos lembrávamos, numa ação conjunta, fomos relacionando e chegamos a  pouco mais de uma centena. Foi mais um bom momento que a mãe nos proporcionou na sua mudez  muito mais eloquente do que silenciosa.
O que compilamos, nada mais é do que um registro amoroso e, ao mesmo tempo, pitoresco que muito bem expressa a filosofia de vida da nossa mãe. Hoje nós usamos ora com uma, ora com outra expressão que ela dizia, o que mostra o quanto dela existe em cada uma de nós. Talvez a relação não esteja completa, mas sempre será tempo para acrescentar o que for sendo lembrado.
Leia, divirta-se, registre o que achar interessante... logo, logo, você estará usando. Há coisas – que achamos – só ela sabia! Outras, um pouco herméticas, quando necessário, consulte a “tradução”! Com certeza, vale à pena ler! Como linguista, não posso deixar de acrescentar que é, também, uma variante tanto temporal como regional. Com toda a certeza, nem sempre muito clara para as novas gerações e/ou para quem não é familiarizado com o falar gaúcho.

Ela dizia com freqüência: Atrás de mim, virá quem bom me fará!(1)/ Faça o bem sem olhar a quem!/ Dia de muito, véspera de pouco!/ Quando o gato sai, os ratos tomam conta!/ Onde o galo canta, janta!(2)/ Quem come de pé, não alcança o que qué(r)!/ Quem dá o que tem, a pedir vem!/ Quem veste o alheio, na praça o despe!(3)/ Não vale a pena gastar pólvora com ximango!(pra não esquecer a história do RS)/ Muito riso, pouco siso!/ Quem faz mais do que pode, é ladrão!(4)

Estas são imperdíveis: É fácil fazer cortesia com o chapéu dos outros! /Quando o pobre acha um ovo, é podre!/ Às vezes, é preciso ter paciência de Jó!/ Quem não tem cabeça, tem perna(s)!/ Não vá o sapateiro além da sola!(5)/ Beleza não põe a mesa!/ Não sei se assobio ou se toco flauta!/ Quem puxa aos seus, não puxa aos estranhos!/ Quem canta, seus males espanta!/ Ata ou desata! (ela sempre foi muito educada)/ Em casa de ferreiro, espeto de pau!/ Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece!

Anote também: Quem não tem cão, caça com gato!/ Cavalo dado não se olha o pelo!/ Deus ajuda quem madruga!/ Nunca falta um chinelo velho pra um pé torto!/ Não tem eira nem beira! (6)/ Viva o luxo e ronque o bucho!/ Cada macaco no seu galho / Não há bem que sempre dure nem mal que se não acabe!/ O que é de gosto é o regalo da vida!/ Comer o pão que o diabo amassou com os pés!/ Dai a César o que é de César!/ Coso-te vivo(a), vivo(a) te coso!(7)

Algumas situações só eram bem expressas por: Pra o bom entendedor, meia palavra basta!/ Quem cala, consente!/ Estava dando sota e basto!(8)/ Devagar se vai ao longe!/ Antes só do que mal acompanhada!/ O seguro morreu de velho!/ Quem semeia vento, colhe tempestade!/ Pra quem é, bacalhau basta! (9)/ Depois do mal feito, chorar não há proveito!/ Devagar com o andor porque o santo é de barro!/ Mais beijado(a) que anel de bispo!(10)/ Mais vale um pássaro na mão do que dois voando!/ Ali, educação é manga de colete!

Mas havia espaço para: Isso só vou admitir o dia em que as galinhas criarem dente!/ Não sabe o que quer! Parece a cobra que perdeu o veneno!/ Gato escaldado tem medo de água fria!/ Juntou a fome com a vontade de comer!/ Parece que está matando cachorro a grito!/ Nem tanto ao mar, nem tanto à terra!/ Ir de vento em popa!/ É pior que procurar agulha no fundo do palheiro!/ Vai dar com os burros n’água!/ Não se pode contar com o ovo que a galinha ainda não botou!

E a fila ainda não parou: Pior a emenda que o soneto(11)/ Mais abandonado que gato em tapera!/ Mais sujo que o último pau de galinheiro!/ O cachorro, quanto mais magro, mais sarna tem!/ Deus dá o frio conforme o cobertor!/ Não te mete de pato a ganso!/ Cada um colhe o que semeia!/ Em terra de cego, quem tem um olho é rei!/ Cuidado com remédio pra não morrer da cura!/ De mal agradecido, o inferno está cheio!/ A dor ensina a gemer!/ Não come o ovo, pra não botar a casca fora!/ Quem conta um conto aumenta um ponto!/ Amarra-se o burro à vontade do dono!/ Ela? Continua dando pancas!(12)/ Quem foi rei, sempre será majestade!

Para nós, as filhas, havia conselhos e advertências especiais. Eram algumas vezes educativas, amorosas; outras, bastante severas. Não podemos esquecer que, como dizia meu pai, “ela é uma pessoa muito boa, mas muito matemática”, a uma alusão a ser ela professora dessa disciplina.

Quando pequenas ouvíamos com frequência: A mentira tem pernas curtas!/ Quem mente, furta!/ O que arde cura, o que aperta segura!(13)/ É preciso rédeas curtas!/ Estou só te cubando!(14)/ Estou vendo, tu “tá” só empalhando!(15)/ Crianças, vocês estão pedindo laço(16) como pão pra boca! Felizmente ficava só na conversa. E, ainda, “Isso brada aos céus!”, quando nós reclamávamos da comida. E, completava, “Há crianças que não têm sequer um pedaço de pão pra matar a fome”.

  Mais tarde, o enfoque mudou e nós muito escutamos: Ouve o conselho de quem muito sabe, mas ouve principalmente o de quem muito te quer! / As palavras comovem, os exemplos arrastam!/ Não vai arrumar sarna pra te coçar!/ Cuidado com o que vocês fazem, senão podem ficar faladas!/ Dize-me com quem andas que dir-te-ei quem és!/ Quando tu está(s) indo, eu já estou de volta...há muito tempo! (uma enroladinha não era fácil!)/ Como demorou... quando eu tiver que mandar buscar a morte, peço pra ti!/ Primeiro o dever, depois o prazer! Mãe, será que alguma vez não se pode comer primeiro a sobremesa?! Acho que sim! Talvez, hoje, com a “lição de casa” em dia a gente, às vezes, possa se permitir.

Nos diálogos, ela usava expressões que lhe eram muito peculiares como: Falando com os meus botões.../ Fiquei com o coração na mão.../ Botando os pingos nos iis.../ Mudando de saco pra mala/! Quando eu bater as botas.../ Fiquei em maus lençóis!/ Estou com o pala em tiras!(mais um gauchês!)/ Fiquei em palpos de aranha!(17)

A citação aleatória, sem nenhum critério lógico, nada mais é do que a forma como guardamos na memória. Lá, está tudo muito bem registrado, disponível para usarmos à vontade no momento oportuno, tudo com o sabor de um cotidiano distante, muito mais alegre do que triste, mas sempre solidário, amoroso e fraterno.  
Ao registrar, dividimos com outras pessoas o que ela não mais expressa, mas foi sua marca registrada. Enfim, um pouco de sua filosofia de vida... toda ela, só nós três tivemos o privilégio de conhecer e, hoje, orienta nossas vidas e a de nossos filhos e netos, o que a torna presença viva no seio da família. Podemos até dizer, ela é como uma sempre-viva, uma florzinha singela, mas com nome profundamente significativo, pois quanto mais se cala, mais e mais presente se faz!  


 Amorosamente, Aliris, com a colaboração e o endosso de Ana Maria e Ana Lucia, filhas de Alyrio e Iolanda Porto Alegre, pelo Dia das Mães, em 2013.
                     
­­­­­­­­­­­­­­__________________
(1)     Uma situação que muito bem explica esse ditado é a do povo que reclama de um governante, no entanto, quando este é substituído, logo percebe que o anterior era bem melhor.
(2)     Uma alusão aos maridos traidores que, após o trabalho, passavam na casa da “outra”, mas iam jantar em casa, tomar banho, deixar roupa suja, mau humor... .
(3)     Refere-se a usarmos o que não é nosso e à possibilidade de podermos, a qualquer momento e até em situação constrangedora, sermos obrigados a devolver ao dono.
(4)     Não significa apenas roubar alguma coisa de alguém, mas de nós mesmos, ou seja, esquecer que temos limites.
(5)     Um sapateiro, visitando uma exposição de quadros, disse ao artista que a bota do cavaleiro num dos quadros, tinha um defeito. O artista ouviu-o atentamente e corrigiu seu erro. Ao voltar lá, o sapateiro, muito feliz, achou a correção perfeita, mas explicou ao artista que agora o que precisava ser corrigido era a gravata do mesmo cavaleiro. O artista lhe respondeu:
— Não vá o sapateiro além da sola!
(6)     Uma referência à arquitetura do Brasil colonial em que as casas tinham eira, beira e até tribeira, dependendo da situação financeira do proprietário, quanto mais rico mais detalhe! Quem não tinha eira nem beira, estava na miséria.
(7)     Também uma referência ao Brasil de então em que era costume costurar a roupa ou a mortalha no corpo do defunto. Assim, se alguém costurasse ou fizesse qualquer ajuste na roupa que outra pessoa vestia, devia repetir essa expressão para não parecer que estivesse lidando com morto.
(8)     Sota e basto significa ser mais esperto que os outros; vencer (alguém) em alguma habilidade; dar a sorte. Sota = dama das cartas do baralho; basto = ás. Botar na mesa a um só tempo essas 2 cartas, em determinado jogo, certamente era a grande cartada.
(9)     Mais uma alusão ao passado, quando comer bacalhau – ao contrário de hoje – era vergonhoso. As pessoas, quando cozinhavam essa iguaria, fechavam portas e janelas para que os vizinhos não sentissem o cheiro. A expressão completa é: “Pra quem é pouca coisa, bacalhau basta!”
(10) Também de antigamente, pelo menos é o que penso! Vem do costume de os fiéis beijarem o anel do bispo da diocese.
(11) Às vezes, tentar consertar uma situação ou uma afirmativa, é bem pior.
(12) Do gauchês, significa um comportamento por demais extrovertido. É claro, aplicava-se principalmente às mulheres.
(13) Era o que ouvíamos quando tínhamos que lavar ou aplicar remédio, principalmente mertiolate em qualquer machucado.
(14) Como professora de matemática, usava o verbo cubar, no sentido de medir a capacidade dum recipiente ou recinto. Metaforicamente, estou te avaliando, te observando.
(15) Demorando, “enrolando”.
(16) Laço, em gauchês, significa surra.
(17) É o mesmo que fiquei em apuros.

quinta-feira, 2 de maio de 2013


POR QUE SÓ AGORA ESCREVO?


É o que familiares e amigos insistentemente querem saber. Diante da inquietação de tantas pessoas, também me questionei e fui em busca da resposta. Para isso, muito “conversei com os meus botões”, para usar uma expressão da minha mãe! Não sou de ficar sem resposta quando a pergunta, de fato, merece ser respondida.


Na minha conversa íntima, expliquei a mim mesma que essa faceta só agora teve oportunidade de se mostrar, porque minha vida foi sempre um corre-corre, dividida entre a família e a profissão. Acrescente-se a isso duas realidades que vivi: uma comum a todas as mulheres, hoje, na década dos “sessenta e uns” e outra particular. Esta, a minha mudança com a família de Santa Maria-RS para Brasília, com três filhos pequenos, a mais moça com apenas dois meses; aquela, o desconforto por não estar me dedicando integralmente aos filhos.


Enfim, a família exigia de um lado; a vida profissional e o constante aperfeiçoamento – já um imperativo, de outro. Havia também um dilema íntimo: como tirar mais tempo da família para o deleite da escrita descompromissada?! Vontade de escrever nunca faltou! Felizmente, na vida, há momento para tudo, basta querer!


Pensei, então, hoje, aposentada, com os filhos adultos e independentes, sem precisar ser “equilibrista” para dar conta de tantos afazeres, me sobrou tempo para o deleite, recordar, registrar e abrir janelas para expor alegrias sentidas, emoções vividas, enfim, o que considero relíquias que merecem ser compartilhadas.


Como minha explicação me pareceu um tanto lógica e objetiva, resolvi ler um pouco de poesia. É sempre bom! E não tardei a encontrar eco para o que havia pensado no que disse em versos o poeta austríaco Rainer Maria Rilke: no começo da manhã, os pássaros voam para todos os lados, em todas as direções, fazem mil coisas... Ao cair da tarde, têm uma só direção: a volta ao ninho, sem mais conversa ou dispersão.


Continuando minhas leituras, em Fernando Pessoa, com o pseudônimo Álvaro de Campos, achei uma explicação que não me havia ocorrido. Deparei-me com um esclarecimento a mais, uma ampliação das minhas justificativas preliminares, coincidentes com o que penso e com a crença que professo nesta quadra da vida.




O poema, transcrevo a seguir.
Às vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...


Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...




Como se sabe, nas obras dos grandes poetas, escritores e pensadores de todos os tempos, as perguntas que nos inquietam são respondidas, se não de maneira explícita, claras nas entrelinhas. É só aguçarmos a sensibilidade!


A quem me inquiriu e a mim mesma, a resposta – por enquanto – é esta: hoje escrevo porque com disponibilidade de tempo e novos interesses, entrei em outra sintonia e escrever é apenas uma das riquezas desta feliz fase da minha vida, enfim, escrevo porque o momento exige e a minh’alma está repleta. Escrever, considero o reino intermediário entre as minhas lembranças e fantasias, ora alegres ora nostálgicas, e a minha atual realidade que me permite expô-las e compartilhá-las com familiares, amigos, leitores anônimos.  E, se não for muita pretensão, que meus escritos possam soar amáveis e, assim, despertar suaves e afetivas emoções em meus leitores.


  Abençoadas janelas!!!


       
        Na casa da minha mãe, em Santa Maria
                           30.03.2013

AS SILENCIOSAS HISTÓRIAS


Objetos, músicas, flores, sabores, plantas, ruas, cores... guardam histórias diferentes para diferentes pessoas.


Assim é minha máquina de costura. Há muito sem uso, mas de uma imensa carga de amor que revela preocupação, amor filial, proteção, enfim tudo que uma criança de quatro anos pode fazer para minimizar o “trabalho” da mãe e, com isso, expressar seu amor.


Quando Junior, meu filho mais velho, era pequeno, eu costumava reunir as peças de roupa que precisavam de conserto para, numa tarde de folga, ir à casa de D. Aurora, minha sogra, fazer-lhe companhia e repará-las, já que eu não tinha máquina de costura. Junior ia comigo e, enquanto eu consertava as peças, batia papo com D. Aurora, ele brincava distraidamente e, então, os três tomávamos o inesquecível café da tarde que ela preparava com tanto desvelo. Nunca imaginei a percepção do Junior sobre aquelas tardes. As crianças, muito mais que os adultos, leem sutilmente nas entrelinhas!


Era assim essa faceta da vida familiar que teria certamente sido esquecida não fora a interferência do Junior que, certo dia, disse ao pai:


“— Pai, aqui está o meu cofrinho! Com esse dinheiro, quero comprar uma máquina de costura pra minha mãe pra ela costurar em casa.”


O pai concordou com ele e, como estava próximo do Dia das Mães, num sábado de manhã, foram juntos comprar a máquina de costura, supostamente apenas com o dinheiro do cofrinho. Junior, na sua doce inocência infantil, me deu, “com suas economias”, um belo e inesquecível presente naquele Dia das Mães.


Mais de trinta e cinco anos se passaram, muito usei aquela máquina, sempre sentindo vibrar o amor que dela emana. Nesses anos todos, Junior sempre soube escolher presentes especiais para mim, que me surpreendem pela utilidade e pela sensibilidade de saber o que, de fato, vou gostar. Isso só se explica pelas afinidades de longa data... que, com certeza, remontam a esta nossa breve existência.


Hoje já não costuro mais, prefiro fazer tricô, ler, escrever, brincar e conversar com os netos Eduardo e Isabela, esta filha do Junior. Por essa razão, resolvi doar minha máquina para uma pessoa que, hoje, está na busca da sua profissionalização e, para isso, precisa de uma máquina de costura, que, embora antiga, funciona muito bem.


Essa atitude é espelhada na de meu filho e espero que a máquina e essa breve história sejam úteis: a máquina no aspecto material e a história que contei no campo afetivo. Tenho certeza, a preocupação, o carinho, o amor serão sempre profícuos, fonte de novos e nobres sentimentos...


Assim é a vida: o amor se espalha, se expande e é por isso que amar nunca será inútil, mesmo quando expressso em gestos pequenos ou infantis. Estes, nós, adultos, precisamos de sensibilidade para entender, já que a dimensão da alma das crianças é imensamente maior que a nossa.



                                                      Amorosamente, Aliris
              16.04.2009

HOMENAGEM A UMA GRANDE MULHER

Helena Ferrari Teixeira
(19.11.1921 – 15.03.2004)

 
       Santa Maria, no Rio Grande do Sul, (à época Santa Maria da Boca-do-Monte), no final da década de 1940, conheceu figura singular que, como o famoso Vento Norte*, de forma marcante, tocou a todos: a maioria reprovava as atitudes liberais daquela moça bonita, inteligente e de oratória brilhante; outros poucos, ou melhor, outras poucas mulheres vibravam com sua ousadia e suas destemidas atitudes, porém calavam-se diante das circunstâncias impostas pelos costumes vigentes. Sim, pois a cidade, nessa época, com padrões altamente rígidos em relação à moral e aos costumes, nunca tinha visto uma mulher distinguir-se de forma tão inusitada. E Helena Ferrari (seu nome “de guerra”) era política, seguidora e amiga de Getúlio Vargas, líder feminista (antes mesmo de se ter forjado o termo com as sucessivas conotações) e poetisa de alta sensibilidade.

 Helena Ferrari ficou órfã de pai aos 14 anos, logo após a família ter perdido a fortuna e, desde então, foi criada, juntamente com as duas irmãs, apenas pela mãe, uma uruguaia de nascimento, mas brasileira de coração.

 A começar, uma casa só de mulheres já suscitava dúvidas. Acrescente-se a isso o fato de uma delas ter participado, na cidade, da fundação do, então, Partido Trabalhista Brasileiro, passar a freqüentar rodas de discussões políticas, participar do movimento Queremista (queremos Getúlio), e ainda poetar. Era muita ousadia para os padrões da época, no interior do Rio Grande do Sul. Helena exerceu também o magistério como professora de Língua Portuguesa, mas seus ideais não cabiam nos limites da  escola. Ela queria mais: falar em praça pública, escutar os humildes e reivindicar seus anseios, erguer a bandeira do partido.

Em Santa Maria, tal como ocorrem mudanças climáticas marcantes, também havia costumes de verão e de inverno. Nas noites quentes, as senhoras da alta sociedade, acompanhadas de suas famílias, reuniam-se na Praça Saldanha Marinho e após, com muita elegância, dirigiam-se ao Bar Tropical para saborear salada de frutas com sorvete; já nas tardes de inverno, reuniam-se para chás em uma ou outra residência para, enquanto tricotavam ao pé da lareira, trocar receitas e ouvir os últimos sucessos de Carlos Gardel. Inversamente a esses costumes, Helena participava de discussões no Café Cristal —  reduto exclusivamente masculino — (as senhoras, quando desacompanhadas, passavam pela calçada do outro lado da rua!), onde se debatiam questões de interesse político e social, sobretudo as relativas aos trabalhadores; ou freqüentava, juntamente com outras poucas mulheres, como Mercedes Begueristein e Maria Rita Assis Brasil Weigert, a sede do PTB, onde fazia parte da Ala Feminina da qual foi fundadora e presidente.

A participação política e social de Helena foi tão marcante que, em 1952, elegeu-se vereadora em sua cidade natal, fato que se repetiu em 1956 e em 1960, sempre com expressivo número de votos. Seu trabalho público, à medida que o tempo passava, tornava-se mais e mais reconhecido e, como é natural, também seus admiradores e opositores se ampliavam em cada um dos lados antagônicos. É importante salientar que sua atuação política não foi influência familiar, pois não havia ninguém que militasse nessa área. Muito pelo contrário, a família criticava-a severamente. Enfim, ela abriu seu próprio caminho!

Ao assumir seu primeiro mandato na Câmara de Vereadores,  de imediato, Helena solicitou a criação de mais um colégio estadual para Santa Maria. Conseguiu seu intento com o nome de Colégio Estadual Manoel Ribas, o que  ela  considerava sua maior conquista pelo muito que essa instituição de ensino, até hoje, representa para a cidade.

Suas inquietações não pararam por aí! Helena Ferrari, como seguidora de Getúlio Vargas, apoiou a classe operária, sobretudo, a dos ferroviários, pois Santa Maria, por sua posição geográfica, era, nesse período, importante centro da Rede Ferroviária Federal.

Fato curioso na sua vida pública ocorreu em determinada visita de Carlos Lacerda à cidade. Ela, de maneira histórica, liderou uma passeata de mais de duzentos ferroviários que protestavam contra o adversário do grande líder da classe operária. Essa passeata realizou-se às 10 horas de uma manhã ensolarada e Helena subiu a Avenida Rio Branco, a principal da cidade, à frente do pelotão de homens, todos, como ela, de guarda-chuvas abertos, gritando: "Corvo! Corvo!" em ritmo cadenciado.

Essa grande mulher era movida por ideais nobres, por isso não se deixava intimidar pela perplexidade que causava nem pela constante censura da família. Sua postura política e sua visão social estiveram sempre acima das convenções vigentes. Com postura tão diversa da dos padrões de sua época, ela não se casou, mas conviveu com carinho e entusiasmo com os quatro sobrinhos. Dentre esses sobrinhos, estou eu que precisei ficar adulta para aquilatar o seu importante papel na trajetória da emancipação da mulher e lhe tributo hoje o meu mais afetuoso reconhecimento e profunda gratidão.
      
Com o golpe militar de 64, Helena viu destruídos os ideais que buscou com tanta determinação e preferiu, então, viver das lembranças do passado e assistir ao crescimento das sementes que lançou em terra fértil. Até onde lhe foi possível, acompanhou com entusiasmo cada conquista feminina. A esse respeito, numa das cartas da nossa doce e reflexiva correspondência, em que respondia sobre minhas considerações acerca da relevância de seu papel, afirmou: "orgulho-me, sem vaidade, por ter  contribuído para a valorização da mulher e para a busca de um mundo melhor".
      
Espero, sinceramente, que, não apenas para as novas gerações da família, sua luta sirva de motivação às mulheres que, embora já tenham percorrido um longo caminho nas suas conquistas pessoais e sociais, ainda se veem à frente de muitas barreiras a vencer. E, conforme o pensamento de Helena, empenhem-se nisso para a construção de um mundo melhor e mais fraterno.
                                                            

*Vento forte e uivante que periodicamente assola Santa Maria e, se não mexe  com a sensibilidade, pelo menos afeta o humor das pessoas.


Brasília/abril de 2004
Publicado no Jornal A Razão (Santa Maria), em 08.03.2005