sábado, 11 de maio de 2013

ECOS DE UM COTIDIANO






Ao longo de nossas vidas, passamos por diferentes – e até opostos – momentos interagindo com as mesmas personagens. Temos amigos de longa data, é claro, mas isso acontece principalmente no meio familiar.
 Assim a nossa relação com nossos pais não foge a essa regra: no início, somos inteiramente dependentes deles e a situação, sem que percebamos muito bem, vai se modificando, modificando... até chegarmos à situação inversa. Como tenho dito a meus filhos, o momento dessa troca inevitável e irreversível é muito difícil tanto para uns como para outros... Mas é a vida! Até que chega um dia em que os pais partem... e os filhos passam a ter uma estrela guia em cada um deles. Que bom, pais e filhos         continuam juntos a caminhada!
Meu pai é, para mim, uma estrela que me orienta, me aponta caminhos, me aconselha há mais de 30 anos; minha mãe, pelo seu atual estado de saúde, acredito, que viva entre dois mundos: quase não participa mais deste, mas já “visita” outras dimensões. É o que penso... se estou certa, pouco importa! Não estou mais preocupada com certezas, exatidões, mas apenas em sentir, entender, como posso, o não dito, o nem sempre aceitável.
Felizmente, eu e minhas irmãs, Iainha (Ana Maria) e Ana Lucia, soubemos, muito bem, no dizer da mãe, “separar o joio do trigo” nessa quadra da vida familiar e nos tornamos ainda mais próximas, solidárias e cúmplices no bom sentido. Essa, como qualquer outra situação, por mais difícil que seja, sempre traz consigo seu lado positivo. É só saber procurar com sensibilidade e, se nada for encontrado, pelo menos, que saibamos entender a mensagem que, ali, inevitavelmente existe.
Num encontro de nós três em Porto Alegre, no ano passado, conversávamos e, sem perceber, ora repetíamos uma ou outra expressão que ouvíamos da nossa mãe. Foi, então, que nos detivemos no sem-número de provérbios, ditados e expressões que ela usava no cotidiano. Para “não gastar o seu latim”, expressava por metáforas o que muitas palavras não diriam tão bem nem com tanta poesia, se bem que, às vezes, ela estivesse “sem poesia!”, ou seja, sem ânimo, sem muito entusiasmo. Nesse dia, resolvemos anotar toda essa riqueza que nos foi presenteada ao longo da vida e, à medida que nos lembrávamos, numa ação conjunta, fomos relacionando e chegamos a  pouco mais de uma centena. Foi mais um bom momento que a mãe nos proporcionou na sua mudez  muito mais eloquente do que silenciosa.
O que compilamos, nada mais é do que um registro amoroso e, ao mesmo tempo, pitoresco que muito bem expressa a filosofia de vida da nossa mãe. Hoje nós usamos ora com uma, ora com outra expressão que ela dizia, o que mostra o quanto dela existe em cada uma de nós. Talvez a relação não esteja completa, mas sempre será tempo para acrescentar o que for sendo lembrado.
Leia, divirta-se, registre o que achar interessante... logo, logo, você estará usando. Há coisas – que achamos – só ela sabia! Outras, um pouco herméticas, quando necessário, consulte a “tradução”! Com certeza, vale à pena ler! Como linguista, não posso deixar de acrescentar que é, também, uma variante tanto temporal como regional. Com toda a certeza, nem sempre muito clara para as novas gerações e/ou para quem não é familiarizado com o falar gaúcho.

Ela dizia com freqüência: Atrás de mim, virá quem bom me fará!(1)/ Faça o bem sem olhar a quem!/ Dia de muito, véspera de pouco!/ Quando o gato sai, os ratos tomam conta!/ Onde o galo canta, janta!(2)/ Quem come de pé, não alcança o que qué(r)!/ Quem dá o que tem, a pedir vem!/ Quem veste o alheio, na praça o despe!(3)/ Não vale a pena gastar pólvora com ximango!(pra não esquecer a história do RS)/ Muito riso, pouco siso!/ Quem faz mais do que pode, é ladrão!(4)

Estas são imperdíveis: É fácil fazer cortesia com o chapéu dos outros! /Quando o pobre acha um ovo, é podre!/ Às vezes, é preciso ter paciência de Jó!/ Quem não tem cabeça, tem perna(s)!/ Não vá o sapateiro além da sola!(5)/ Beleza não põe a mesa!/ Não sei se assobio ou se toco flauta!/ Quem puxa aos seus, não puxa aos estranhos!/ Quem canta, seus males espanta!/ Ata ou desata! (ela sempre foi muito educada)/ Em casa de ferreiro, espeto de pau!/ Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece!

Anote também: Quem não tem cão, caça com gato!/ Cavalo dado não se olha o pelo!/ Deus ajuda quem madruga!/ Nunca falta um chinelo velho pra um pé torto!/ Não tem eira nem beira! (6)/ Viva o luxo e ronque o bucho!/ Cada macaco no seu galho / Não há bem que sempre dure nem mal que se não acabe!/ O que é de gosto é o regalo da vida!/ Comer o pão que o diabo amassou com os pés!/ Dai a César o que é de César!/ Coso-te vivo(a), vivo(a) te coso!(7)

Algumas situações só eram bem expressas por: Pra o bom entendedor, meia palavra basta!/ Quem cala, consente!/ Estava dando sota e basto!(8)/ Devagar se vai ao longe!/ Antes só do que mal acompanhada!/ O seguro morreu de velho!/ Quem semeia vento, colhe tempestade!/ Pra quem é, bacalhau basta! (9)/ Depois do mal feito, chorar não há proveito!/ Devagar com o andor porque o santo é de barro!/ Mais beijado(a) que anel de bispo!(10)/ Mais vale um pássaro na mão do que dois voando!/ Ali, educação é manga de colete!

Mas havia espaço para: Isso só vou admitir o dia em que as galinhas criarem dente!/ Não sabe o que quer! Parece a cobra que perdeu o veneno!/ Gato escaldado tem medo de água fria!/ Juntou a fome com a vontade de comer!/ Parece que está matando cachorro a grito!/ Nem tanto ao mar, nem tanto à terra!/ Ir de vento em popa!/ É pior que procurar agulha no fundo do palheiro!/ Vai dar com os burros n’água!/ Não se pode contar com o ovo que a galinha ainda não botou!

E a fila ainda não parou: Pior a emenda que o soneto(11)/ Mais abandonado que gato em tapera!/ Mais sujo que o último pau de galinheiro!/ O cachorro, quanto mais magro, mais sarna tem!/ Deus dá o frio conforme o cobertor!/ Não te mete de pato a ganso!/ Cada um colhe o que semeia!/ Em terra de cego, quem tem um olho é rei!/ Cuidado com remédio pra não morrer da cura!/ De mal agradecido, o inferno está cheio!/ A dor ensina a gemer!/ Não come o ovo, pra não botar a casca fora!/ Quem conta um conto aumenta um ponto!/ Amarra-se o burro à vontade do dono!/ Ela? Continua dando pancas!(12)/ Quem foi rei, sempre será majestade!

Para nós, as filhas, havia conselhos e advertências especiais. Eram algumas vezes educativas, amorosas; outras, bastante severas. Não podemos esquecer que, como dizia meu pai, “ela é uma pessoa muito boa, mas muito matemática”, a uma alusão a ser ela professora dessa disciplina.

Quando pequenas ouvíamos com frequência: A mentira tem pernas curtas!/ Quem mente, furta!/ O que arde cura, o que aperta segura!(13)/ É preciso rédeas curtas!/ Estou só te cubando!(14)/ Estou vendo, tu “tá” só empalhando!(15)/ Crianças, vocês estão pedindo laço(16) como pão pra boca! Felizmente ficava só na conversa. E, ainda, “Isso brada aos céus!”, quando nós reclamávamos da comida. E, completava, “Há crianças que não têm sequer um pedaço de pão pra matar a fome”.

  Mais tarde, o enfoque mudou e nós muito escutamos: Ouve o conselho de quem muito sabe, mas ouve principalmente o de quem muito te quer! / As palavras comovem, os exemplos arrastam!/ Não vai arrumar sarna pra te coçar!/ Cuidado com o que vocês fazem, senão podem ficar faladas!/ Dize-me com quem andas que dir-te-ei quem és!/ Quando tu está(s) indo, eu já estou de volta...há muito tempo! (uma enroladinha não era fácil!)/ Como demorou... quando eu tiver que mandar buscar a morte, peço pra ti!/ Primeiro o dever, depois o prazer! Mãe, será que alguma vez não se pode comer primeiro a sobremesa?! Acho que sim! Talvez, hoje, com a “lição de casa” em dia a gente, às vezes, possa se permitir.

Nos diálogos, ela usava expressões que lhe eram muito peculiares como: Falando com os meus botões.../ Fiquei com o coração na mão.../ Botando os pingos nos iis.../ Mudando de saco pra mala/! Quando eu bater as botas.../ Fiquei em maus lençóis!/ Estou com o pala em tiras!(mais um gauchês!)/ Fiquei em palpos de aranha!(17)

A citação aleatória, sem nenhum critério lógico, nada mais é do que a forma como guardamos na memória. Lá, está tudo muito bem registrado, disponível para usarmos à vontade no momento oportuno, tudo com o sabor de um cotidiano distante, muito mais alegre do que triste, mas sempre solidário, amoroso e fraterno.  
Ao registrar, dividimos com outras pessoas o que ela não mais expressa, mas foi sua marca registrada. Enfim, um pouco de sua filosofia de vida... toda ela, só nós três tivemos o privilégio de conhecer e, hoje, orienta nossas vidas e a de nossos filhos e netos, o que a torna presença viva no seio da família. Podemos até dizer, ela é como uma sempre-viva, uma florzinha singela, mas com nome profundamente significativo, pois quanto mais se cala, mais e mais presente se faz!  


 Amorosamente, Aliris, com a colaboração e o endosso de Ana Maria e Ana Lucia, filhas de Alyrio e Iolanda Porto Alegre, pelo Dia das Mães, em 2013.
                     
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(1)     Uma situação que muito bem explica esse ditado é a do povo que reclama de um governante, no entanto, quando este é substituído, logo percebe que o anterior era bem melhor.
(2)     Uma alusão aos maridos traidores que, após o trabalho, passavam na casa da “outra”, mas iam jantar em casa, tomar banho, deixar roupa suja, mau humor... .
(3)     Refere-se a usarmos o que não é nosso e à possibilidade de podermos, a qualquer momento e até em situação constrangedora, sermos obrigados a devolver ao dono.
(4)     Não significa apenas roubar alguma coisa de alguém, mas de nós mesmos, ou seja, esquecer que temos limites.
(5)     Um sapateiro, visitando uma exposição de quadros, disse ao artista que a bota do cavaleiro num dos quadros, tinha um defeito. O artista ouviu-o atentamente e corrigiu seu erro. Ao voltar lá, o sapateiro, muito feliz, achou a correção perfeita, mas explicou ao artista que agora o que precisava ser corrigido era a gravata do mesmo cavaleiro. O artista lhe respondeu:
— Não vá o sapateiro além da sola!
(6)     Uma referência à arquitetura do Brasil colonial em que as casas tinham eira, beira e até tribeira, dependendo da situação financeira do proprietário, quanto mais rico mais detalhe! Quem não tinha eira nem beira, estava na miséria.
(7)     Também uma referência ao Brasil de então em que era costume costurar a roupa ou a mortalha no corpo do defunto. Assim, se alguém costurasse ou fizesse qualquer ajuste na roupa que outra pessoa vestia, devia repetir essa expressão para não parecer que estivesse lidando com morto.
(8)     Sota e basto significa ser mais esperto que os outros; vencer (alguém) em alguma habilidade; dar a sorte. Sota = dama das cartas do baralho; basto = ás. Botar na mesa a um só tempo essas 2 cartas, em determinado jogo, certamente era a grande cartada.
(9)     Mais uma alusão ao passado, quando comer bacalhau – ao contrário de hoje – era vergonhoso. As pessoas, quando cozinhavam essa iguaria, fechavam portas e janelas para que os vizinhos não sentissem o cheiro. A expressão completa é: “Pra quem é pouca coisa, bacalhau basta!”
(10) Também de antigamente, pelo menos é o que penso! Vem do costume de os fiéis beijarem o anel do bispo da diocese.
(11) Às vezes, tentar consertar uma situação ou uma afirmativa, é bem pior.
(12) Do gauchês, significa um comportamento por demais extrovertido. É claro, aplicava-se principalmente às mulheres.
(13) Era o que ouvíamos quando tínhamos que lavar ou aplicar remédio, principalmente mertiolate em qualquer machucado.
(14) Como professora de matemática, usava o verbo cubar, no sentido de medir a capacidade dum recipiente ou recinto. Metaforicamente, estou te avaliando, te observando.
(15) Demorando, “enrolando”.
(16) Laço, em gauchês, significa surra.
(17) É o mesmo que fiquei em apuros.

Um comentário:

  1. Olá querida Aliris! Parabéns pelos seus textos que são lindos, significativos e emocionantes...
    "Ecos de um cotidiano", muito me encantou, pois fez recordar a minha mãe que, também, costumava utilizar-se de provérbios e ditados em seu cotidiano.
    Um grande abraço com votos de muito sucesso com seu Blog.
    Beijosss com carinho,
    Tânia Maria P Nobre Afonso

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